Crónica de Alexandre Honrado | Kundera – A insuportável ideia da partida

A LIBERDADE – está a passar por aqui: Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado

kundera
A insuportável ideia da partida

Tive muitos escritores como meus heróis, nem sei se é essa a palavra exata, antes materializações de ideias novas contra as ideias feitas, alguém que me entrava pela cabeça e sem um único ruído me gritava assim, num eco que me ficava pelas veias, vá lá, por todo o sempre, se é que existe isso, o todo o sempre. Sempre dei graças aos livros e não concebo a ideia do seu desaparecimento, ou da prisão que pode constituir não os ler ou ter apenas um para interpretar o mundo, como se fosse o dicionário de todos os caprichos. Nada mais a propósito na morte de Milan Kundera, que parte a ficar deixando o rasto que quisermos que dele fique, nada mais oportuno do que falar de um livro que lemos em voz alta, sem sons exteriores mas com muitos gritos cá por dentro. Não sei se vos diz alguma coisa, o título A Insustentável Leveza do Ser, uma obra das muitas, todas, memoráveis que legou. Gosto que seja Do Ser e não De Ser, pois ali, nessa pequena diferença se operaram todas as diferenças.

Foi com inquietação que li a primeira página e partilhei o seu estremecimento. Diz assim:

O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há́-de repetir e que essa repetição se há́-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá́ este mito insensato?                                                                                      O mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há de desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é semelhante a uma sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não vale mais do que uma guerra qualquer do século XIV entre dois reinos africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre suplícios indescritíveis. Mas algo se alterará nessa guerra do século XIV entre dois reinos africanos se, no eterno retorno, se vier a repetir um número incalculável de vezes? Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um bloco perdurável cuja estupidez não terá reemissão.

Obcecado pelo estudo da memória, essas linhas deixaram-me até hoje a pensar na gravidade de voltar atrás e repetir o que já se viveu, num eterno carrocel de conformismo e nostalgia. Não há nada pior do que repetir. É ter a certeza de tropeçar uma segunda vez na pedra que, no caminho, nos fez cair estrondosamente. É anular a memória e aprisioná-la na cela funda e escura do esquecimento. É negar o esplendor.

Milan Kundera partiu. Lê-lo é seguir em frente. Fazer mais do ser que não merece repetir-se.

 

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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